por Ramon Mapa
"Karl Jaspers dizia que a pergunta filosófica, em última instância, se assemelha muito às perguntas das crianças. Por não estar ainda totalmente alocada no mundo e na linguagem a criança não perdeu sua capacidade de se maravilhar diante desse mesmo mundo, como diria Heidegger. Para ela, saber como seu desenho animado preferido é feito ou de onde veem os bebês tem o mesmo fascínio. Infelizmente, nós adultos, soterrados por nossas obrigações, contratempos, contas a pagar, preocupação com calvície e menstruações atrasadas muitas vezes perdemos essa capacidade de nos maravilhar. E até a condenamos nas pessoas adultas que por alguma sorte a mantém. Nas sociedades industriais contemporâneas, essencialmente voltadas ao tecnicismo, à aplicabilidade e à eficiência, "perder tempo" se questionando e se maravilhando não é uma boa. O que importa são os formulários preenchidos, os parafusos apertados, as Tvs vendidas e os cafezinhos estrategicamente identificados como descanso. Aos sonhadores que ainda vivem seu exercício de auto reflexão, a zombaria e o desrespeito. Um dos meus sonhadores favoritos se chama Bill Watterson. Em 1985 Watterson criou uma tira de quadrinhos em que contava histórias sobre um garotinho e seu tigre de pelúcia. Os leitores que esperavam historinhas bobas sob peripércias infantis encontraram argutos questionamentos existenciais e morais concretizados na capacidade dos dois personagens de ficarem perplexos com o mundo ao redor. Os próprios nomes dos personagens são referências filosóficas. Calvin teve seu nome retirado do teólogo francês Jean Calvin e Haroldo (Hobbes no original) do filósofo inglês Thomas Hobbes, duas leituras constantes e apaixonadas de Watterson. Durante os anos em que a tira foi publicada diariamente, Calvin e Haroldo se depararam com inúmeras situações, que iam desde se relacionar com a alteridade, com a autoridade e com a morte. Mas se engana quem pensa que vai encontrar um tratado sistemático sobre a ontologia (aff) apátrida do homem contemporâneo nas histórias de Calvin. Watterson foi tão genial que trouxe a filosofia para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído: para a vida. Não é filosofia ou pensamento acadêmico, não é decoreba de nomes ou sistemas, é o pensar sobre si mesmo. Esse autodiálogo, essa reflexão constante sobre o que se acredita, o que se vive e o que se é, é que é filosofia. Quando Marx dizia que os filósofos já haviam pensado demasiado sobre o mundo e que era chegado o momento de mudá-lo, era também sobre essa atrofia a que o pensar filosófico se condenou quando se tornou de forma indevida em um consolo acadêmico. Então temos a figura do imponente filósofo de escola, que lê e discute Hegel em alemão, mas que é incapaz de se questionar sobre as coisas mais ordinárias de sua própria vida".
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