LIVROS AJUDAM PRESOS A
TRANSFORMAREM-SE
Pesquisa realizada em presídios
atesta a função da literatura como instrumento de transformação.
Nas penitenciárias femininas uma
grata surpresa: leem mais e buscam também a leitura de livros infantis. As
detentas veem na literatura infantil uma possibilidade de aproximação dos seus
filhos.
Uma grande lição para todos nós!
Nada se compara à companhia de um bom livro. Fatima Geovanini
CORREIO BRAZILIENSE
BRASÍLIA, DF, 6 DE AGOSTO DE 2013
DIVERSãO & ARTE
Palavras que libertam
A ligação é forte: enquanto a
cadeia é mote e cenário de diversos clássicos da literatura, os livros ajudam
presos a transformarem-se. O Correio traz alguns exemplos
VANESSA AQUINO
A falta de liberdade e as
perspectivas de como lidar com ela quando enfim chegar é uma das questões que
mobilizam as reflexões de quem está em cárcere. Quando se viu preso, aos 21
anos, na Penitenciária do Distrito Federal 1 (Papuda), a agressividade de João
da Silva* era o principal impedimento para o bom relacionamento com os
companheiros. No entanto, ao ter acesso a livros, as transformações começaram a
acontecer, sobretudo no que diz respeito ao significado de estar livre. “Às
vezes, a liberdade é um conceito relativo. Quando se está lá fora, você pode
sentir-se preso ao vício e ao crime. Aqui, com a leitura, eu tive mais sensação
de liberdade”, disse o detento à mestre em Teoria Literária e Literatura pela
Universidade de Brasília (UnB) Maria Luzineide Rodrigues, que o incentivou a
ler. A leitura pode mudar o significado do mundo de quem o vê por trás das
grades e instigar internos a produzir literatura, já que as memórias e vivências
no confinamento podem construir cenários de narrativas consistentes, como fez
Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere; Fiodor Dostoiévski, em Recordações da
Casa dos Mortos; e, mais recentemente, Luiz Alberto Mendes, em três relatos dos
30 anos em que esteve preso: Às Cegas e Memórias de um Sobrevivente e Cela
Forte.
A professora Maria Luzineide
Ribeiro é autora de uma pesquisa que mostra como é o mundo no Complexo
Penitenciário do Distrito Federal, a partir da leitura. “Fiz um levantamento da
formação desse leitor, do comportamento dele no cárcere, de que maneira a
leitura era realizada, como era o acesso e quais eram os livros mais lidos”,
explica. Na Papuda, a professora observou que os livros de autoajuda e com
temática religiosa — como Ágape, do Padre Marcelo Rossi — eram os mais lidos,
no primeiro contato dos presos com a leitura na cadeia. Depois, a literatura
internacional, especialmente obras de sagas fantásticas, como Senhor dos Anéis
e Harry Potter, acabam sendo os mais procurados.
No início da detenção, o maior
impedimento para a leitura é o processo de adaptação, segundo a pesquisadora.
“Quando eu perguntava para o preso porque que ele não lia, a resposta era a
dificuldade de adaptação. Tinha o fator psicológico de estar na prisão. Depois,
quando eles começam a ler, explicam que a leitura é uma forma de manter-se
distante daquela realidade, de estar em contato com o mundo e também uma
maneira de ficar distante dos problemas. Uma espécie de fuga, mas acho, ainda,
que é uma tentativa de afastar-se daquele mundo de marginalidade.”
A pesquisa de Maria Luzineide se
estendeu à Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Lá, ela encontrou uma
realidade diferente e um número maior de leitoras. O motivo, segundo ela, é o
acesso facilitado aos livros. “Elas têm uma biblioteca no pátio e podem ter
contato com as publicações, todos os dias, durante o banho de sol”, diz a
professora que constatou que a preferência das detentas é pela literatura
infantil e infanto-juvenil. “Talvez por aproximá-las dos filhos, porque muitas
reclamam desse laço que é rompido. É um resgate da memória, da lembrança dos
filhos.”
Relatos do cárcere
Muitos presos sentem necessidade
de mostrar ao mundo a realidade de uma vida privada de liberdade. Um dos
momentos mais difíceis do escritor russo Fiódor Dostoiévski, por exemplo, foi
vivido enquanto esteve preso na Sibéria. O autor foi condenado a prisão e a
trabalhos forçados por debater ideias revolucionárias; escreveu, então,
Recordações da Casa dos Mortos, um relato documental sobre as agruras do
confinamento.
O brasileiro Graciliano Ramos
também teve a liberdade suprimida após uma caça a comunistas durante o Estado
Novo. No período, Graciliano ainda não era comunista e sua prisão nem chegou a
ter processo. Em Memórias do Cárcere, o escritor alagoano relata o sofrimento
da clausura e das torturas, detalhes sobre os conflitos e características de
outros presos.
O exemplo mais recente é o do
paulistano Luiz Alberto Mendes, autor de Às Cegas, Cela Forte e Memórias de um
Sobrevivente, que passou boa parte da vida em reformatórios e penitenciárias do
estado de São Paulo. “Inaugurei muita penitenciária”, brinca. Autodidata,
tornou-se escritor dentro do cárcere e foi estimulado pelas leituras que fazia.
“O interesse por literatura começou na cela-forte, quando um amigo começou a
falar de livros e contar as histórias que havia lido neles. Escrever tornou-se mais
um motivo para viver, aquele que talvez estivesse me faltando.”
Recordações da Casa dos Mortos
De Fiódor Dostoiévski. Tradução
de Nicolau S. Peticov. Nova Alexandria, 324 páginas. R$ 68
Trecho:
“Eu, finalmente, tive que me
conformar com minha situação no presídio. Na verdade, foi-me preciso um ano
para isso e aquele ano foi o mais difícil da minha vida. Todo ele gravou-se
profundamente na minha memória. Eu acredito que me lembro de cada hora daquele
ano até os menores detalhes.”
Memórias do Cárcere
De Graciliano Ramos. Record, 728
páginas. R$ 67,90.
Trecho:
“A minha vida anterior se diluía,
perdia-se além daquele imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muro a
separar-me dela, a altear-se, a engrossar, e para cá do muro — nuvens,
incongruências. Entre esses farrapos de realidade e sonho, era doloroso pensar
numa inteira despersonalização. (...) As imagens misturadas aos móveis
sumiram-se completamente.”
Às cegas
De Luiz Alberto Mendes. Companhia
das Letras, 360 páginas. R$ 54.
Trecho:
“Só saía da cela para ir ao campo
de futebol dar uma arejada uma vez por semana. Estudava através dos cursos do
Instituto Universal Brasileiro. Não sei qual foi o pensador que afirmou que os
cegos ajudariam aos cegos, e os aleijados, aos aleijados. Ali, ninguém sabia
muito, muito menos tudo. Mas sabíamos alguma coisa e aprendíamos uns com os
outros.”
Memórias de um Sobrevivente
De Luiz Alberto Mendes. Companhia
das Letras, 424 páginas. R$ 29.
Trecho:
“Foi para comer a garotada ali,
comprar cigarro, doce, linha, folha de seda, pião, bolinha, figurinha, essas
necessidades de todo garoto naquela época, que comecei a roubar. E roubava da
carteira de minha mãe e quase todo dia do bolso de meu pai. Ele desmaiava
bêbado. Ajudava a despi-lo, mas cobrava minha parte.”
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