domingo, 11 de agosto de 2013

metáfora para um pai

UM SEGREDO

Fernando Namora* 

Meu pai tinha sandálias de vento 
só agora o sei. 
Tinha sandálias de vento 
e isto nem sequer é uma maneira de dizer 
andava por longe os olhos fugidos a expressão em                                                 
[nenhures 
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem                                            
[estar em todos os sítios.  

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando 
mas toda a sua ausência era 
o malogro de o ser 
só agora o sei. 
Andava por longe ou sentíamo-lo longe vem
dar no mesmo e no entanto víamo-lo sempre 
ali plantado de imobilidade absorta 
no cepo de carvalho raiado de negro 
a que o caruncho comera o miolo 
como as lagartas esvaziam as maçãs 
estranhamente quieto murcho resignado 
no seu estranho vadiar 
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói 
como um apelo perdido uma coragem abortada. 
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso                                                
[tingida 
ausência era altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste 
tristeza sim tristeza solene e irremediada 
só agora o sei. 

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares 
sulco azul 
que nada distingue do azul onde foi sulcado 
e por isso nem é águia nem ao menos 
o que do seu voo resta para que 
o sonho se faça real. 
Meu pai era um homem com as nostalgias 
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a                                              
[víscera 
como as tais lagartas esfarelam as maçãs 
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias 
miraculosamente leves soltas imaginosas 
indo de acaso em acaso de astro em astro 
eram de vento as suas sandálias fabulosas 
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar. 

Os outros não o sabiam nem eu o sabia 
só o víamos sentado no cepo velho 
raiado de negro como uma estrela fossilizada 
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste 
sei-o agora tarde de mais 
tarde de mais é uma dor de remorso 
que me consome víscera a víscera 
como as tais lagartas esfarelam as maçãs. 
Mas de qualquer maneira existe um segredo 
de que ambos partilhamos 
ciosamente avaramente indecifradamente 
como os astutos conspiradores 
que fazem do seu segredo 
um mágico tesouro inviolado. 

Um segredo simples: 
o que sentiste pai 
sinto-o eu agora por ambos 
sinto-o por ti 
sinto-o por mim.  
Ainda que por ele devorados.  

*poeta português
(fonte: página citador.pt/poemas)
* * * 

nota: este pai foi devorado pela  Doença de Alzheimer 

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