domingo, 29 de junho de 2014

uma crônica: Doutor, será que saio dessa?

 RUBEM ALVES

Doutor, será que saio dessa?
Estou remando a canoa rumo à terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades

DOUTOR, AGORA que estamos sozinhos quero lhe fazer uma pergunta: "Será que eu escapo dessa?" Mas, por favor, não responda agora; sei o que o senhor vai dizer. O senhor vai dizer: "Estamos fazendo tudo o que é possível para que você viva". Mas não me interessa nem o que o senhor está fazendo nem o que todos os médicos do mundo estão fazendo. Sou uma pessoa inteligente. Sei a resposta. Sei que vou morrer.
Morrer é difícil. Há a dor da morte e a dor das mentiras. Meus parentes, quando lhes sugiro o tema da morte, logo o evitam: "Tira essa idéia de morte da cabeça. Logo você estará andando de novo..." Tentam enganar-me, por amor. Fico então numa grande solidão. Não há ninguém com quem eu possa conversar honestamente.
As visitas vêm, assentam-se, comentam as coisas do cotidiano. Eu também sorrio delicadamente. É estranho que uma pessoa que está morrendo tenha a obrigação social de ser delicada com as visitas. As coisas sobre que falam não me interessam. Eu estou muito longe remando minha canoa no grande rio, rumo à terceira margem. Meu tempo é curto. Não posso gastá-lo com banalidades. Os religiosos não me ajudam. Pretendem saber coisas do outro mundo. Mas o outro mundo não é problema para mim. Se Deus existe, então Deus, que é amor, cuidará dele. Se Deus não existe, então não há porque me preocupar com o outro mundo porque nada me faltará se eu mesmo faltar. Ah! Como seria bom se as pessoas que me amam me lessem poemas ou ouvissem comigo as músicas que amo. Para mim a beleza é o rosto sensível de Deus.
A proximidade da morte trouxe-me lucidez aos meus sentimentos. Tristeza, é isso que enche a minha alma. A vida está cheia de tantas coisas boas! Não quero partir...
Doutor, sua missão é lutar contra a morte. Mas a última batalha é sempre perdida. Sei que nas escolas de medicina se ensina sobre a morte como um fenômeno biológico. Mas o que lhe ensinaram sobre a morte como uma experiência humana? O morrer humano não pode ser dito com a linguagem da ciência. A ciência só lida com generalidades. Mas a morte de uma pessoa é um evento único. Minha morte será única no universo! Uma estrela vai se apagar.
Os remédios que o senhor receita são inúteis. O senhor sabe disso. São ilusões para manter acesa a esperança. Mas há um momento da vida em que é preciso perder a esperança. Abandonada a esperança, a luta cessa e vem então a paz.
Mas há algo que os seus remédios podem fazer. Não quero morrer com dor. Nesse ponto para isso serve a ciência: para me tirar a dor. Muitos médicos se enchem de escrúpulos por medo de que os sedativos matem o doente. Preferem deixá-lo sofrendo a fim de manter limpa e sem pecado sua própria consciência. Com isso eles transformam o fim harmonioso da melodia que é a vida num acorde de gritos desafinados. Somos humanos na medida em que brilha em nós a esperança da alegria. Quando a possibilidade de alegria se vai, é porque a vida humana se foi. Esse é o meu último pedido: quero que minha sonata termine bonita e em paz...
E agora, doutor, me responda: "Será que eu saio dessa?". Ficarei feliz se o senhor não me der aquela resposta boba, mas se assentar ao lado da minha cama e me disser: "Você está com medo de morrer. Eu também tenho medo de morrer...". Então conversaremos sobre o medo que mora em nós dois que vamos morrer...




recebida por e-mail

Nenhum comentário:

Postar um comentário