sábado, 22 de fevereiro de 2014

dois artigos

Lirian Rocha                
Nutricionista
CRN 0786-4   

Um olhar Holístico


A terapêutica do atendimento multi-interdisciplinar tende a ser a melhor oferta àquele que precisa ser visto holisticamente.
Temos a oportunidade de participarmos de um grupo de profissionais de diferentes áreas do saber o que nos permite transitar, sem conflitos, no conhecimento do outro.
Observamos que tal prática engrandece não só a nós profissionais, mas, atinge de maneira eficaz àquele que nos é confiado.
O fluxo de atendimento, geralmente, é do médico para os demais da Equipe. Este profissional, por sua peculiaridade, é o mais procurado pelo paciente, o qual coloca sua confiança terapêutica.
O atendimento em equipe multi-interdisciplinar exige uma sintonia filosófica, a qual é discutida e ampliada, sob a coordenação do médico em reuniões clínicas, de rotina ou quando se fizer necessário. A filosofia do atendimento é atender ao paciente como em ser biográfico, respeitando assim sua história, seus hábitos, visando alívio de sintomas, controle das intercorrências e propiciando condições para suportar com algum prazer tão árduo momento. A técnica profissional não se sobrepõe a ética do respeito aquele ser em momento tão vulnerável.
O paciente é visto de maneira holística sem ser dicotomizado, permitindo assim que sinta-se amparado e seguro. Tal fato também é percebido pela família e cuidadores, os quais questionam e debatem decisões com qualquer um profissional da Equipe.
O nutricionista ao ser indicado, se inteira do caso clínico do momento, diagnóstico, medicamentos e demais acompanhamentos profissionais. É através da consulta ao paciente e aos cuidadores e familiares, que é feito o levantamento biográfico. Esta prática se dá em conversa informal, na qual são anotados fatos, momentos, intercorrências ligadas a alimentação e inerentes aquela pessoa. São abordadas trocas de informações que serão úteis a elaboração de preparações nas quais existam uma identificação pelo doente. Nada adiantaria a elaboração de uma dieta muito bem calculada, posicionada adequadamente ao quadro clínico, se a mesma não atingisse a expectativa de receber um alimento prazeroso. Neste momento o entrosamento técnico com o fonoaudiólogo é de suma importância, assim como os demais profissionais que atuam no tratamento.
O profissional de nutrição tem condições técnicas para dentro da história alimentar informada, propiciar alimentos em consistência e porcionamento seguros que sejam oferecidos não só para nutrir o físico, mas, também a alma.
Entender a fragilidade emocional do enfermo e de seus cuidadores também é boa prática técnica profissional.
Estar atento para compreender os questionamentos dos familiares e cuidadores, aliviá-los de possíveis angústias e dúvidas, é parte integrante do atendimento.
Sinto necessidade de relatar que tivemos uma experiência peculiar, dentre outras. Visitamos uma paciente que se encontrava acamada, em estágio avançado de demência, já tendo sido submetida a gastronomia. Na entrevista, aguardavam por mim, vários familiares, dentre eles, filhos, noras, netos e os cuidadores. Iniciamos a entrevista na qual permiti uma ampla discussão entre todos os presentes, que “devagaram” sobre vários momentos familiares referidos a alimentação. Perpassaram desde os almoços e lanches diários como festas, almoços de familiares, etc... em determinado momento, após longos debates, risos, brincadeiras relatadas, interrompi e tentei alencar alguns alimentos, por eles citados, como o de melhor adaptação ao quadro do paciente. Cabe lembrar que elaborei uma “dieta” por eles a ser produzida para introduzirem através da sonda, permitindo assim que todos dessem sua dose de “carinho” na elaboração da mesma. 
O alimento por mim escolhido, para começar a interagir prazerosamente com o paciente, foi a partir de uma fala:
 _Mamãe adorava goiabada com queijo!!
Ainda atenta a intimidade daquela família pedi que se recordassem sobre que música era preferida pela paciente, ao que a resposta foi unânime e entre risos disseram:
 _Mamãe associava e cantava e ouvia o dia inteiro o Hino Nacional!!
Neste momento questionei quanto a termos ali naquele momento, a oportunidade de colocarmos para que a paciente ouvisse.
Dirigi-me ao quarto, acompanhada por todos e neste momento já ouvíamos o Hino Nacional do Brasil e ao som deste perguntei a paciente, falando seu nome:
_Sabe o que temos hoje de sobremesa?
_Doce de goiaba com queijo!!
Como resposta, a paciente, piscou os olhos, antes cerrados e engoliu a saliva lambendo os lábios.
Foi motivo de grande euforia por todos que ali estávamos.
Sendo assim orientei que sempre que fôssemos administrar a preparação, por eles elaboradas, na sonda, oferecessem volume mínimo (5 ml) pela via oral de algumas preparações prazerosas ao paladar da paciente, como: doce de goiaba coado com gotas de requeijão.  E não deixassem de manter sempre que possível o Hino Nacional de Brasil como música de fundo.
Estar atento ao paciente significa penetrar no mundo de sua vivência familiar, profissional, religiosa, investigar minuciosamente onde e como podemos dar conforto, alívio sem deixar que a técnica se sobreponha ao prazer. Não agredir é uma forma de tratar com respeito.
Em, 14 de outubro de 2013.
Lirian Rocha                

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A Arte de alimentar

Recordo-me de uma manhã de domingo, minha mãe preparava, na cozinha, o almoço, fato esse corriqueiro, mas que neste dia da semana tornava-se “nobre”, importante, pois, era o Almoço de Domingo...
Esta como várias outras se repetiram durante minha vida. “O que vamos preparar para este domingo?” – era a conversa no mercado e na feira entre as matriarcas.
A mesa na “sala de jantar”, nome dado, com muita propriedade, ocupava um local nobre da casa...
“Este domingo vamos almoçar na casa de sua avó” – dizia às vezes minha mãe...
O autor Michel Onfray em seu livro “A Razão Gulosa – Filosofia do gosto”, disse:
“_ O paladar e o olfato são, entre os cinco sentidos, os que usufruem de pior reputação já que são generosos em mostrar o quanto o homem que pensa e medita é ao mesmo tempo um animal que sente cheiro e saboreia”.
“Poesia é alimento:
Há de se estocar,
Para os tempos de seca...”
(Luana dos Santos Dias)
O ato de alimentar é inerente ao ser vivo. Nós homens, mamíferos temos isso muito bem vivenciado, pois, nosso primeiro alimento está intimamente ligado a mãe. É natural o fato de que os mamíferos, mesmo os animais irracionais, busquem a mama de suas mães ao nascer.
Para nós, seres emocionais, fazemos uma correlação entre frustração e “satisfação alimentar”, ou melhor, mantemos a lembrança primária de alimento sendo oferecido em momento de “dor”.
Ao nascermos, todo aquele stress é recompensado pela mama com alimento bem adequado ao nosso paladar.



Durante toda a nossa existência ouvimos frases, tais como:
_ ...se você não comer você não vai crescer!
_ ...para ficar curado você tem que comer!
_...vamos comemorar com um bolo?
É através do alimento que evoluímos como espécime. Somos o que somos por conseguirmos utilizar os alimentos de maneira mais eficaz do que outros animais. A nossa inteligência, o uso de utensílios, o fogo, toda a tecnologia científica visa como providenciar alimentos para todos do planeta.
Sendo assim, mais uma vez vemos que é através do alimento que temos condições de sobreviver as intempéries que possam impedir nossa saúde.
Tais fatos foram sendo implantados no nosso dia a dia, e todos inclusive os da Indústria Alimentícia, perceberam que o alimento é o único bem de consumo que terá sempre mercado.
Foi através da engenharia de alimentos que os produtos industrializados foram elaborados de modo a seduzir, de maneira impecável, os diversos paladares para todas as faixas etárias. Elaboraram embalagens práticas para consumo em diferentes locais dentro ou fora de casa, facilitando assim atender aqueles que por diversos motivos tenham que fazer refeições rápidas.
Não temos dúvida que tal fato foi e é de grande valia para a população, porém, sabemos que diversas doenças metabólicas foram desencadeadas devido ao uso abusivo destes alimentos, conhecidos mundialmente como Fast Food.
Como podemos observar a humanidade busca soluções para não ficar com FOME.
A fome tão bem descrita por vários pesquisadores, escritores, artistas, poetas, políticos, é degradante, é apavoradora, é doída, é insuportável, é intolerável. Temos compaixão sempre que nos é abordado o assunto FOME, mesmo que não estejamos presenciando, mas, ao imaginarmos nos compadecemos.
As religiões em várias de suas doutrinas aconselham que todos devem saciar os famintos. O jejum é prezado como sacrifício para agradar aos Deuses. Todas as doutrinas professam sanar a fome dos povos e consideram abençoadas aqueles que providenciam meios de alimentar seus iguais.
Toda esta introdução leva a entender como deve ser a atuação dos agentes de saúde diante de seus pacientes que são privados por qualquer motivo de se alimentar.
Particularmente cabe ao profissional de nutrição, o nutricionista, buscar, levantar, junto aos familiares ou mesmo ao paciente, alimentos e ou preparações que atendam melhor àquele paladar.
Entender que em vários momentos aquele alimento representa muito mais do que o valor nutritivo inerente a sua composição.
Ver, ouvir, entender, descobrir:
_ Qual é a fome?
_De quem é a fome?
_Fome de que?
Sabemos que pacientes em fase avançada da doença, que impede que a alimentação seja oferecida por via oral, são as vezes submetidos a métodos artificiais de oferta de alimento.
Tal fato se dá geralmente por insistência da família, ou mesmo por dificuldade da Equipe, em perceber que a alimentação não irá reverter o curso da doença e ainda sacrificar o paciente.
Geralmente os pacientes alimentados por meio de sondas são “abandonados” pelos cuidadores, que se sentem “despreocupados” pois seu doente está controlado do desconforto da fome.
Observa-se que a oferta, mesmo mínima de alimentos pelo cuidador, propicia melhor interação afetiva ao paciente.
Tal fato exige a escolha de quem poderá ofertar pequenos volumes de alimento, que agrade ao paciente, com segurança tanto na consistência quanto à deglutição.
A Fonoaudiologia hoje atende muito bem a estes pacientes com mecanismos adequados, de modo a tentar impedir um quadro de broncoaspiração com o alimento.
A dieta baseia-se em alimentos saborosos ao paciente, visando alívio e desconforto e se possível ofertando prazer.
Buscar atender ao paladar do paciente, mediante um recordatório de receitas familiares, relacionar preparações à festejos ou mesmo a eventos que foram importantes para aquele que neste momento, tem mais fome emocional do que física.
Respeitar a falta de apetite, tão comum num estágio final de vida, é obrigação do profissional de saúde que atende este paciente.
A origem da palavra Arte (Wikipédia) – “Arte – do latim ARS, significando técnica e/ou habilidade – geralmente é entendida como atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa, realizada a partir da percepção, das emoções e das idéias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”.         
Como relatei no início desta escrita a oferta do alimento no momento do sofrimento generalizado pelas grandes perdas, percebidas ou não, deve ser feito com ARTE, ou melhor, com Habilidade, para garantir não a nutrição deste físico já em fase irrecuperável, mas sedento, faminto de afeto, carinho, prazer.
Recordar um sabor de “almoço de domingo” é mais nutritivo do que as calorias tão bem calculadas, mas, fria de uma alimentação artificial.
“Num coração sereno
Toda manhã é de sol.”
(Uby Oliveira)
Em, 14 de outubro de 2013.
Lirian Rocha                

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